APRESENTAÇÃO NA FEIRA DO LIVRO DO FUNCHAL 2019

Apresentação do livro AZUL INSTANTÂNEO na Feira do Livro do Funchal 2019 (venda no stand da CMF - Câmara Municipal do Funchal), mesa de apresentação Celina Martins, Rui Camacho e Pedro Vale, no Funchal - Portugal
Na fotografia: Pedro Vale, Celina Martins, Rui Camacho

Apresentação do livro de poemas Azul instantâneo de Pedro Vale
O título do livro convoca a ideia de um mergulho no infinito, o contacto com o inesperado, ler o livro de Pedro Vale implica um rito que faculta uma experiência de beleza: ir ao encontro das palavras que transmitem transcendência e superação.
O azul é a mais imaterial das cores, ela implica a profundidade, o olhar penetra nesta cor sem encontrar obstáculo. Para os egípcios, o azul era a cor da verdade. No Budismo tibetano, o azul é a sabedoria transcendente. Para Kandisnski, o azul é a cor que apazigua, é a cor da serenidade. Nesta óptica, o poeta convida o leitor a beber o infinito azul para ter acesso a uma experiência terapêutica de cura. "Beber tanto azul até limpar a Neurose" (22). Para si, a poesia é fuga de um mundo profano, de modo a inscrever num novo mundo em que a palavra entra num jogo polissémico de associações.
O seu livro de poemas inscreve-se na tradição dos caligramas de Apollinaire, poemas escritos representando imagens como por exemplo o movimento curvo da onda do mar na página 20: "cresce a espuma rebenta o som". Assim o caligrama convida o leitor a mergulhar nas profundezas do mar e no som encantatório do mar.
Através da busca de novas formas de expressão para escapar aos lugares-comuns, o seu texto poético dinamiza a função do poeta como descobridor de uma nova linguagem literária e plástica que atinge lugares insólitos. "Hoje acordei com uma andorinha no estômago" (23). Através de uma experiência do estranhamento, o poeta fala de uma mundividência em que a palavra poética incita a uma viagem ao novo modo de olhar o mundo. Interiorizar a andorinha leva a várias associações: é entranhar a ave da primavera, é entranhar a sua beleza e a sua leveza O sujeito não sente nenhuma angústia, a noite em que surge esta experiência do ser é limpa.
A poesia é a arte combinatória que explora novos caminhos de dizer a vida e as entranhas do ser humano, afastando-se da linguagem esclerosada do quotidiano, os poemas de Vale inauguram uma viagem de libertação interior. A poesia é canto de resistência que combate a desumanização dos tempos fragmentados através da espiritualização dos sentidos. A poesia é conhecimento que ensina a ver para além das aparências, ajuda o homem a captar o real e o imaginário com um olhar renovador, convidando-o a tornar-se consciente dos sentimentos e das imagens mais profundos e inefáveis.
Os poemas são textos visuais": Vale apropria-se de letras, fragmentos de texto da vida que se constroem na página em branco como partituras de música, como quadros figurativos.
As palavras reenviam para jogos intertextuais: o verso da capa e contracapa. "Ofereço uma madalena ao mar e lembro" remete para o motivo da madalena de Marcel Proust, quando o narrador proustiano molha um pedaço da madalena no chá e o saboreia, dá-se imediatamente uma epifania: ele não unicamente é transformado pela intensidade do sabor tem também acesso a uma outra dimensão da vida que traz a reminiscência dos tempos da sua infância quando a tia lhe oferecia uma madalena com chá de tilo.
Beber as palavras de Vale implica mergulhar na revelação do edifício da memória.
Para si, a poesia é uma ferramenta que luta contra o esquecimento ?
Quando escreve "Liberto a palavra e solto o pulso", penso na função da poesia como gesto de resistência e lembro o belo poema "Liberdade" de Paul Éluard que celebra a liberdade como princípio de ética num mundo dilacerado pela guerra.
O uso dos brancos marca uma alternância entre o conhecido e o desconhecido, o não-dito e o dito, avanços, recuos, as rimas da linguagem consigo mesma, as intermitências do viver-escrever
Alguns poemas estão escritos em inglês, algumas palavras em francês e em italiano atravessam a página: trata-se de inscrever a poesia num movimento de participação de todos os imaginários das línguas, trata-se de construir uma nova Torre de Babel, mais utópica, em que distintas línguas interagem numa perspectiva de alteridades consentidas. O escritor nesta aldeia global já não pode escrever de modo monolingue
O poema é um acto de aprendizagem que ensina a serenidade que transfigura: O poema aquece as montanhas/ e relativiza a fúria/inocente e letal/do vento. O poema inaugura uma relação de comunhão com os elementos do cosmos
Um jogo intertextual explícito encena um diálogo com o conto "A Mancha" (Cronicando) de Mia Couto. O Pedro reescreve uma nova narrativa a partir do texto coutiano que denuncia os efeitos devastadores da guerra civil. O poema, para si, é um lugar de denuncia da desumanidade do homem. O Pedro introduz no seu texto um novo elemento o homem manchado pela distração do cansaço de viver.
A poesia é uma luta contra o tédio?
A poesia é o canto de resistência que combate a desumanização dos tempos fragmentados através da espiritualização dos sentidos.
O poema é uma abertura para a experiência do espanto: a árvore plumeria surge como a voz que sugere um caminho: ela aconselha ao viajante a não ser obtuso (p. 11), a olhar para além das aparências e o sujeito acede ao sonho transformador, entranhando a beleza e a sabedoria da árvore. A árvore simboliza a ponte entre o mundo terrestre e o mundo transcendente, ela integra os elementos essenciais do cosmos
á água circula na sua seiva, a terra integra-se no seu corpo através das raízes, o ar alimenta as suas folhas, o fogo brota quando esfregamos dois paus (Chevalier & Gheerbrandt, 1994, p. 89).
A poesia tem o dom de criar um diálogo transfigurador com as energias regeneradoras da natureza?
Existem imagens que surgem da exploração do inconsciente: o telhado a verter lágrimas de fel (12) o poema emerge da cloaca musical de Brahms (17) o cão sem fim (28) bebo do eco varrido da cal (30).
A poesia permite uma viagem em que o criador descobre potencialidades insuspeitadas, a poesia é desejo de outramento no sentido de Álvaro de Campos que queria sentir tudo de todas as maneiras
O cão cego do poema da p. 35 é a metáfora do homem confinado, o homem que não enxerga a beleza das coisas essenciais do mundo, o homem submetido "à sardónica podridão".
A página 37 explicita a sua busca como poeta: "Queria/inventar/Uma linguagem, movimento perpétuo e um culto e belo cogumelo encontrar. Queria a raiz, o chão, a manta, o lar ... descoberto o grande projeto de beleza"
A sua busca consiste em extrair do nada a beleza das coisas essenciais, dar corpo ao movimento da alma "a mão em peregrinação" . Para si, a criação poética é uma operação durante a qual retira ou extrai do seu interior certas palavras que oferecem um chão e uma casa para habitar
Seguindo a tradição dos contos Koan do budismo que tem como fim propiciar a iluminação espiritual, a pág 40 oferece ao leitor um rito de iniciação em que é valorizado o olhar atento e transformador: "a grandeza dos olhos mede-se sempre por um renovado modo de olhar". De forma condensada, o diálogo entre mestre e discípulo fala da urgência de olhar o mundo com os olhos impregnados de deslumbramento, o homem contemporâneo perde a capacidade de maravilhamento, cessa de olhar a vida nas suas minudências e singularidades.
A entontecida lentidão (44) é a metáfora de uma inércia que paralisa?
A poesia é o achado com as forças obscuras de um pensamento não dirigido, um pensamento que surge do inconsciente colectivo, é uma travessia no negro e o encontro com a eternidade "Finto na noite/a eterna substância do tempo"
p. 40 a experiência insular da Ponte de Pargo é a metáfora de um mergulho interior: o silêncio de ouro convoca a alquimia dos sentimentos
51 as palavras falam do não-dito, do enigma que se oculta nas intermitências da linguagem.
Na pág. 53 cita as coisas primordiais que o definem como um ser múltiplo, um ser, capaz de ver o alado, o perecível, a breve eternidade das coisas o vento, o verde , o sol, a sede Concorda com Cecília Meireles, "somos uma difícil unidade/de muitos instantes ínfimos"
p. 55 O Pedro é impulsionado pelo desejo, esse desejo de escrever leva-o a viver a experiência do deslumbramento que se sintetiza na imagem fulgurante das glicínias
p. 59 A poesia é uma constante busca da palavra que nos faculte um lugar de pertença "Procuro nas ventrechas das frases sem fim o nexo algum do início do pensamento" A poesia é para si a experiência do conhecimento ?
p. 60 Escrever poesia é ter acesso à alba dos dias : "aurora azulada na palma do tempo". Escrever poesia é mergulhar na nascente do inexplicável, na torrente de palavras que nos atravessam: "risco, mar, azulejo e gestação"
p. 62 A poesia é o encontro com o inefável, o encontro com o mistério do invisível: "fecho os olhos e recordo tudo aquilo que ainda não vi" (62). A poesia consiste em captar a ilha de que somos feitos, a ilha grávida de sentidos
p. 63 A última palavra do seu texto poético é humanidade. Num mundo assolado por guerras e xenofobias, num mundo desolado pelo culto da velocidade e pela omnipresença da imagem do vídeoclip, a palavra escrita do poema permite restaurar uma unidade perdida com a empatia, com a necessidade de sermos mais humanos em sintonia com a dor do Outro.
Celina Martins, Rui Camacho e Pedro Vale