RESENHA LITERÁRIA “MARCIO SALES SARAIVA” de Rio de Janeiro

23-07-2020

RESENHA LITERÁRIA "MARCIO SALES SARAIVA" de Rio de Janeiro (23 de julho de 2020)

"Deitada na praia, fecho os olhos e recordo tudo aquilo que ainda não vi."

Li recentemente "Azul instantâneo" (2018, produzido em Portugal) do poeta Pedro Vale. Fiquei surpreso, por vezes, espantado com as metáforas, intertextualidades, críticas sociais e "visualidades" destes poemas. Separei algumas passagens que não conseguem sintetizá-lo...

...

O poema aquece

as montanhas

quase sem voz

e relativiza a fúria

Inocente e letal

Do vento

...

(..)"a poesia vai

pela rua,

nua.

esconde-se

nas manhãs mais

frias.

e é à noite que lhe foge

a voz."(..)

...

O poema emerge da cloaca musical de Brahms, eternizando o momento:

palavra-sopro.

...

(...)"- Ó alma lusa,

Acorda e sente,

mesmo que à tangente,

O que é ser filha de Portugal."

...

Suas insinuações são interessantes e psicanaliticamente ricas - pense no significado de 'blue' em inglês - como nesse haikai "abrasileirado" de três versos:

...

"Beber tanto azul

Até limpar a

Neurose."

...

Há toques surreais ("hoje acordei com uma andorinha no estômago") na poesia deste português que me cativaram.

...

"Bebo do eco varrido da cal

O esquecimento do palco descansado."

..

Sua poesia é, majoritariamente, feita com poucos versos, enxuta, concisa e há influências do concretismo, do cuidado com as formas das palavras e com a Gestalt que elas produzem juntas. Em alguns momentos da leitura de "Azul instantâneo", lembrei-me do nosso poeta Arnaldo Antunes e sua carpintaria com as palavras.

...

"O rio não corre,

Só o pensamento."

...

"Revelou o mestre ao seu discípulo:

- A grandeza dos olhos mede-se

sempre por um renovado modo de olhar."

...

E quem lê Pedro Vale - seguindo a correria do seu pensamento - com este "renovado modo de olhar" irá descobrir sua poesia sofisticada e imagética. Fiquei surpreso, positivamente surpreso e grato.

O esforço de "Azul instantâneo" me parece sintetizado nestes versos:

...

"Quer i a

I n v e n t a r

U m a l i n g u a g e m ,

movimento perpétuo, e

Um culto e belo cogumelo encontrar.

Queria a raiz, o chão, a manta, o lar." (...)

...

Pedro Vale inventou essa linguagem, muito dele, muito nossa. E há também pequenas prosas poéticas, belíssimas e cheia de imagens encantadas. Para encerrar, deixo essa:

...

"Os meus sonhos são simples.

Um coreto atual, uma praça ficcional, mistura de estranho jardim

bordel e prisão, um vestido dormido, milhões de línguas cortesãs,

uma maçã trincada, jazz moderno, uma imposição vitoriana,

talento comercial, cruzamentos, estações por abandonar, sorrisos

satânicos, belas rameiras, uma precetora desenhada e cobras, e

mais cobras.

Os meus sonhos não sei se são simples."

...

Os meus também Pedro...

Marcio Sales Saraiva

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